As experiências de viver em grandes cidades, como Toronto e Londres, despertaram em Leslie Kern certa inquietude. O fato de que mulheres devem se proteger o tempo todo, inclusive em lugares considerados seguros, acendeu na geógrafa canadense um alerta de que havia algo errado nessa norma social do medo.
Publicidade

Os incômodos, então, foram crescendo na mesma medida da evolução de sua gravidez. “Independente de onde estava, sempre tive que lutar contra o assédio nas ruas. Depois, quando me tornei mãe, descobri que as cidades não eram muito amigáveis ​​para os pais também. Tudo, desde subir no ônibus até entrar em um prédio público, tornou-se mais difícil, e a mensagem parecia ser: você não pertence a este lugar”, conta Leslie em entrevista por e-mail para Marie Claire.

O resultado das pesquisas e reflexões sobre o assunto estão em “Cidade Feminista” (ed. Oficina Raquel, R$ 55), lançado em 2021. No livro, a autora busca entender como as cidades desempenham um papel na desigualdade das mulheres na sociedade. Parte das conclusões ela conta a seguir:

MARIE CLAIRE Qual é a relação entre arquitetura, segurança e feminismo?
LESLIE KERN 
Para começar, a maioria dos planos de arquitetura e segurança não são projetados por mulheres, nem levam as experiências das mulheres em consideração.

Normalmente, as preocupações com a segurança das mulheres têm sido secundárias, na melhor das hipóteses, quando se trata de planejar edifícios, ruas, estradas, parques e muito mais. Foram décadas de ativismo para colocar a segurança das mulheres na agenda de planejamento, e ainda temos que ir além de “mais iluminação” como a solução.

Um passo é incluir mais mulheres e outros grupassos marginalizados nos processos de projeto e planejamento, bem como usar auditorias de segurança para ajudar a descobrir o que uma comunidade precisa para se sentir mais segura. Em última análise, porém, arquitetura e design são parte do problema.

LK No nível mais óbvio, o resultado é que as cidades foram criadas para servir aos papéis dos homens e as vidas e experiências das mulheres foram, na melhor das hipóteses, uma reflexão tardia.

Os exemplos incluem a forma como as redes de transporte são projetadas – elas priorizam o deslocamento de pessoas para dentro e fora da cidade central em uma jornada linear nas horas de pico. Porém, pesquisas em todo o mundo mostram que as viagens das mulheres são mais propensas a envolver várias paradas, não são lineares e incluem viagens para serviço doméstico e viagens para trabalho remunerado.

As mulheres também fazem mais viagens de transporte público e pedestre e têm menos acesso a veículos particulares. Mesmo assim, nossos sistemas de trânsito continuam a ser organizados em torno do conforto e da conveniência da velha ideia do homem que sustenta a família. Qualquer pessoa que já tentou levar um carrinho de bebê para um ônibus ou metrô sabe que o sistema não foi projetado para ela.

MC O que podemos fazer imediatamente para tornar os grandes centros urbanos mais seguros para as mulheres e outros grupos?
LK
 Eu começaria garantindo que houvesse uma moradia central a preços acessíveis perto de escolas, trabalho e transporte público. As mulheres sofrem mais violência em casa e os altos custos de moradia podem impedi-las de abandonar o abuso.

Elas também querem poder viajar facilmente entre a casa, o trabalho, as compras, sem estarem isoladas ou longe dos locais de atividade urbana. Ambientes de uso misto também ajudariam, pois aumentam a probabilidade de haver pessoas por perto, serviço de transporte público, negócios abertos em horários diferentes do dia e da noite.

Os sistemas de transporte poderiam funcionar para melhorar a segurança, oferecendo locais para esperar, serviço mais frequente à noite e tendo uma atitude de tolerância zero em relação a importunação sexual. “Embaixadores de trânsito” não policiais seriam colocados em ônibus e trens para fornecer um recurso adicional e um ponto de vista para os passageiros.
As cidades poderiam proibir as imagens publicitárias sexistas e excessivamente sexualizadas dos espaços públicos (algumas cidades escandinavas já fizeram isso) e envolver as mulheres em práticas de “auditoria de segurança” para aprender quais áreas precisam ser melhoradas em termos de iluminação, visão e acessibilidade. Isso significa envolver mulheres, meninas e talvez outros grupos marginalizados, como idosos, pessoas com deficiência, em processos de planejamento de baixo para cima e ouvir suas ideias.

Trabalhar para melhorar a representação das mulheres no governo municipal e nos serviços, bem como treinar e reciclar funcionários do setor público, incluindo a polícia, em questões relacionadas à igualdade de gênero são intervenções importantes.

MC A cidade pode ser mais hostil às mulheres transgênero, negras e indígenas do que às brancas? De que maneiras?
LK 
Estatísticas de muitos lugares, incluindo meu país natal, o Canadá, mostram que essas mulheres sofrem mais violência do que as brancas. Isso está relacionado ao racismo, à transfobia, ao colonialismo em curso, à pobreza e ao fato de que a sociedade leva menos a sério o que é feito contra essas mulheres.

Isso significa que a polícia pode ter menos probabilidade de intervir, e vamos ser realistas, às vezes a polícia é perpetradora dessa violência. As negras, as trans e as indígenas têm maior probabilidade de ficar sem teto ou correr o risco de ficar sem teto, de enfrentar discriminação no mercado de trabalho e de habitação e de morar em bairros menos seguros. Portanto, temos que ter um entendimento interseccional da violência para garantir que as mulheres mais vulneráveis ​​possam estar protegidas.

MC Como seria o planejamento urbano ideal, garantindo segurança e acessibilidade para todos?
LK 
Não tenho certeza se a perfeição é possível, especialmente porque a sociedade está sempre mudando, assim como os problemas que enfrentamos, como a pandemia e as mudanças climáticas.

No entanto, acredito firmemente que o melhor caminho é garantir que todos tenham suas necessidades básicas atendidas: isso inclui moradia, alimentação, água, saúde, educação, emprego, creche, assistência aos idosos e saúde mental. Trata-se de construir segurança desde o início, não tentando controlar a violência de cima para baixo, ou seja, por meio de mais policiamento.

No momento, muitas de nossas sociedades punem aqueles que não têm o suficiente, ao invés de buscar maneiras de garantir que eles não caiam pelo buraco. Para meu mundo e cidade ideais, isso significa que o cuidado deve estar no centro de como planejamos e construímos.

MC A que distância estamos desse ideal?
LK
 Acho que a pandemia nos mostrou que estamos muito longe. Passamos dois anos discutindo se deveríamos tomar medidas e precauções muito básicas para cuidar de nossos amigos, familiares e vizinhos. Precisamos de uma grande mudança cultural: a compreensão de que somos todos interdependentes e que nunca sobreviveremos a grandes desafios como a pandemia ou a mudança climática sem esse conhecimento.

MC Por que pensar em uma cidade para as mulheres garante mais segurança e inclusão para todos?
LK
 Muitas das intervenções que eu e outras pessoas sugerimos em nome da inclusão das mulheres são benéficas para muitas pessoas. Tornar a infraestrutura urbana acessível para carrinhos de bebê ajuda também a idosos, deficientes físicos, crianças, entregadores e qualquer pessoa com mala ou carrinho cheio de mantimentos, por exemplo.

A criação de ruas, sistemas de transporte público e parques mais seguros significa que mais pessoas podem circular livremente e desfrutar da cidade. O importante é que as vozes que há muito foram excluídas ou silenciadas no planejamento urbano – mulheres, minorias raciais, pessoas pobres e da classe trabalhadora, pessoas queer, deficientes físicos – sejam trazidas para a conversa.

Fonte: MARIE CLAIRE