Na década de 1970, em Berkeley, Califórnia, um grupo ativista dos direitos das pessoas com deficiência, chamado Rolling Quads, começou a desmontar os meios-fios e instalar rampas improvisadas nas calçadas, exigindo acesso para os cadeirantes. Mas, o que as pessoas não esperavam era que os usuários de cadeiras de rodas não seriam os únicos a se beneficiar da intervenção.
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Logo, pedestres com carrinhos de bebê, compras pesadas, malas ou simplesmente com mobilidade reduzida passaram a usar regularmente as rampas. Da mesma forma, uma cidade com inclusão de gênero funciona melhor para todos. Uma cidade onde todas as minorias de gênero, com idades e habilidades diferentes, podem se locomover com facilidade e segurança, participar plenamente da força de trabalho e da vida pública, levar uma vida saudável, sociável e ativa é uma cidade que melhora a vida de todos.

É com esse exemplo que o Manual de Planejamento Urbano com Inclusão de Gênero, publicado em 2020 pela organização The World Bank, inicia o seu último capítulo. Ao propor estratégias práticas e teóricas para criar cidades com inclusão de gênero, o manual desvincula o desenho urbano da lógica que traz o homem branco e economicamente ativo como o usuário “neutro” da cidade. Sendo assim, as iniciativas apresentadas pelo guia procuram romper com a perpetuação das normas patriarcais de gênero refletidas na cidade, padrões que começaram a ser questionados na década de 1970 quando estudiosas feministas dos EUA e Europa analisaram as maneiras pelas quais o planejamento urbano excluía as necessidades das mulheres. Hoje em dia, mais de 50 anos depois, essa discussão é urgente, e atinge outros parâmetros incluindo diferentes minorias relacionadas à identidade de gênero, como pessoas transgênero, agênero, de gênero neutro, não-binárias etc.

Nesse sentido, pensar o planejamento urbano sobre a ótica das minorias de gênero é um tema de fundamental importância, visto que são essas estratégias as responsáveis por moldar o ambiente ao nosso redor que, por sua vez, molda a forma como vivemos, trabalhamos e descansamos. Para ilustrar, imagine uma mãe solteira que vive na periferia da cidade e não se sente segura no trajeto noturno de volta para o lar. Por este motivo, ela começa a trabalhar informalmente em casa e ganhar apenas o suficiente para viver em uma área com risco de deslizamento ou inundação. Ou ainda, imagine se um homem transexual for agredido no ônibus voltando da sua aula noturna, ele pode desistir dos estudos ou mesmo deixar de frequentar espaços públicos. Enfim, são muitos os cenários possíveis de serem descritos aqui que ilustram como um ambiente urbano não planejado para atender essas minorias pode desencadear graves impactos sociais e econômicos.

Em vista disso, o planejamento urbano com inclusão de gênero deve ser participativo, incluindo ativamente as vozes das minorias; integrado, adotando uma abordagem holística e transversal que promove a construção do relacionamento cidadão-cidade; universal, atendendo às necessidades de todas as minorias independente da idade e habilidade; educativo, compartilhando dados e estudos sobre equidade de gênero; e financiado, reservando recursos suficientes para implementação das estratégias urbanas necessárias.

Na prática, segundo as pesquisas feitas com minorias de gênero em diferentes cidades, os grandes desafios apontados na ocupação do espaço público e realização das tarefas diárias se concentram na acessibilidade, segurança e facilidade de locomoção. Com isso em mente, muitas cidades têm repensado seu desenho urbano contemplando quatro critérios fundamentais:

Acessibilidade

Há alguns anos, um grupo de sociólogas desenvolveu um estudo na cidade de Viena, Áustria, que mostrou que as meninas deixavam de frequentar os parques a partir dos nove anos de idade. Já compreendendo as possíveis causas disso, colocou-se em prática um projeto-piloto que reformou um parque existente, incluindo novos acessos, dividindo áreas abertas em espaços mais privativos com paisagismo e bancos que facilitassem a interação, além da inclusão de quadras de outros esportes como vôlei e badminton. A partir dessa estratégia, quase instantaneamente notou-se uma diferença nos padrões de uso com mais presença feminina e da comunidade LGBTQIA+, rompendo a possível monopolização que estava acontecendo nos parques pelos meninos e pelo futebol. Esse exemplo demonstra claramente o que significa acessibilidade hoje em dia. Muito mais do que tornar os espaços fisicamente acessíveis, atualmente, acessibilidade significa que todos podem acessar e usar o espaço público de forma livre, fácil e confortável.

Além do caso acima, a acessibilidade implementada no planejamento urbano com inclusão de gênero pode ser vista na criação dos banheiros públicos de gênero neutro presentes em algumas cidades ao redor do mundo. Ademais, as instalações sanitárias estão incorporando espaços adequados para troca de fraldas (não mais apenas no banheiro feminino) e sistemas de descarte para produtos menstruais.

Mobilidade

Assim como acessibilidade, a mobilidade é um aspecto fundamental que está sendo repensado no desenho urbano com inclusão de gênero. Além das estratégias estruturais corriqueiras, como aumento das calçadas ou faixas elevadas para facilitar a locomoção dos pedestres (que são, em grande medida, minorias de gênero), é possível perceber outras estratégias de logística que trazem o gênero para discussão.

Os transportes coletivos e trajetos noturnos são constantemente retratados como grandes desafios, já que trazem à tona situações de vulnerabilidade e insegurança. Para tanto, a fim de modificar esse cenário, estratégias simples estão sendo aplicadas em diferentes cidades do mundo. Entre elas estão a implementação de horários de ônibus e trens que atendam às necessidades de todos os gêneros e não se concentram apenas nos padrões ou horas de deslocamento tradicionais e a instituição de um programa de solicitação de parada permitindo que os passageiros solicitem a descida em qualquer ponto ao longo de uma rota de ônibus durante a noite. Inclui-se aqui ainda a expansão das redes de transporte para a periferia, o fornecimento de transporte escolar com valor reduzido ou gratuito para aumentar o acesso a oportunidades educacionais para crianças e aliviar a carga das mães ou a criação de espaços separados por gênero, como ônibus ou vagões de metrô exclusivos para as minorias.

Segurança

Além das questões de mobilidade, a vulnerabilidade também está presente nos espaços públicos pouco iluminados, mal conservados e confinados que podem transmitir uma sensação de perigo. Com isso, atenção especial está sendo dada à iluminação pública, principalmente em torno das paradas de ônibus. Em alguns pontos de Nova York, é possível perceber uma abordagem sensível ao gênero, assim como na pioneira Viena, que tornou os parques e ruas da cidade mais seguros e confortáveis ​​em nível individual. Nelas, foi instalada melhor iluminação e criados bolsões semifechados em parques, que são visíveis, mas ainda oferecem um nível razoável de privacidade para aqueles que não se sentem à vontade em se expôr desde todos ângulos, trazendo mais segurança principalmente aos grupos LGBTQIA+. Trata-se de fugir dos projetos claustrofóbicos e fechados ou das grandes praças abertas dominadas pela iluminação de segurança e amplos ângulos de visão ditados por estratégias de vigilância e proteção da propriedade privada.

Outra iniciativa interessante que está sendo repensada para as cidades com inclusão de gênero diz respeito ao mobiliário urbano. Assim como no caso dos parques de Viena, um novo arranjo dos bancos parece uma estratégia simples, mas pode significar muito. Os usuais bancos alinhados, que facilitam o olhar à distância e a vigilância, refletem a masculinidade do espaço público. No entanto, quando posicionados um em frente ao outro, criam espaços de convivência e interações face a face, aumentando a sensação de liberdade e segurança das minorias de gênero que frequentam o local.

Representatividade

Assim como o mobiliário, os monumentos urbanos também falam sobre a masculinidade do espaço público. Enquanto elementos que representam uma narrativa comum, eles agora têm incorporado um pensamento mais crítico, abarcando a representatividade e diversidade. Na cidade de Manchester, por exemplo, o Memorial a Alan Turing foi inaugurado na Gay Village em 2001, e em 2008, em Berlim, foi inaugurado o memorial aos homossexuais perseguidos pelo nazismo.

Mas além dos monumentos, é possível perceber em várias cidades a criação de uma “marca” ou identidade visual para o espaço público que seja inclusiva e acolha minorias sexuais e de gênero de todas as idades e habilidades, ajudando a minar a hostilidade pública e aumentar o sentimento de pertencimento.

Fonte: Archdaily