O ano de 2020 trouxe consigo um turbilhão de desafios, colocando em xeque muitos aspectos da vida cotidiana. Marcados pela pandemia todos nós precisamos, de alguma forma, nos reinventar para resistir a esse momento único. Com a cidade, não foi diferente.
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A Covid-19, assim como outras doenças infecciosas (peste negra, gripe espanhola, etc.) escancarou a relação entre a sua proliferação e a urbanização. Uma análise fácil de ser feita quando os dados mostram que a propagação do vírus tem sido muito maior em grandes centros urbanos.

Nesse sentido, a crise sanitária tem trazido à tona discussões sobre o modelo de urbanização ao qual nossas cidades são submetidas, um modelo de aglomerações dispersas que prioriza a mobilidade através de veículos automotores. Wilson Ribeiro dos Santos, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas, em artigo elaborado em parceria com Sidney Piocchi Bernardini e Gabriela Celani, afirma que esse modelo de urbanização no qual o comércio e os serviços se concentram no centro da cidade, enquanto áreas estritamente residenciais e os condomínios fechados se situam na periferia, acabou acelerando a dispersão do vírus, pois pessoas de todas as partes da cidade precisam circular diariamente pelo mesmo local, onde trabalham, estudam, vão ao médico, fazem compras etc.

Em contraposição a este modelo, pesquisadores e estudiosos têm se debruçado sobre as possíveis alternativas para a cidade pós-pandemia e sobre como podemos tirar partido dessa situação para recriar espaços mais justos e humanos. Nesta linha de pensamento, (re)surgiram alguns conceitos urbanísticos interessantes como as cidades policêntricas ou “cidades de 15 minutos”. Ambos conceitos abordam principalmente a diminuição dos deslocamentos criando pequenas comunidades que oferecem serviços básicos para o cotidiano.

No que diz respeito ao modelo policêntrico de cidades, o mesmo artigo anteriormente citado apresenta um estudo muito recente, divulgado no bioRxiv1, que explica como a contaminação entre indivíduos é muito mais lenta nas cidades que seguem este modelo, já que a maioria de seus moradores não precisa passar diariamente pelos mesmos locais de concentração. Segundo o artigo, por não usarem os mesmos transportes coletivos, no caso, a maioria sequer depende desse modal pois pode ir a pé ou de bicicleta para o trabalho, a escola, a unidade básica de saúde ou o centro de comércio local. Ao seja, ao reduzir a necessidade de deslocamentos longos, não apenas se reduz a circulação dos vírus, mas também as comunidades e as economias locais são fortalecidas. Este modelo também reforça as relações de vizinhança que, como os autores do artigo pontuam, é algo extremamente importante quando estamos enfrentando situações como a atual, na qual precisamos de cooperação e cuidado.

O artigo traz ainda outro ponto positivo nas múltiplas centralidades que é a viabilidade do uso de meios de transporte ativos, como a caminhada e as bicicletas, próprias ou compartilhadas, evitando a necessidade de aglomeração no transporte coletivo e ainda contribuindo para a redução de comorbidades como a obesidade, a pressão alta e a diabetes, três agravantes para os pacientes contaminados com Covid-19.

O conceito das “cidades de 15 minutos”, por sua vez, traz ideias semelhantes às chamadas policêntricas, pois significa uma estratégia para incentivar o desenvolvimento de pequenas comunidades autossuficientes, onde os serviços básicos estejam disponíveis a menos de 15 minutos. A capital francesa, Paris, é um expoente quando se fala sobre essa tática, que inclusive foi um dos pilares da campanha política da prefeita reeleita Anne Hidalgo. Assim como trata este artigo publicado pelo ArchDaily, a estratégia “ville de quart d’heure” procura transformar a capital em bairros mais eficientes para reduzir a poluição e criar áreas social e economicamente diversas.

Mais próximo da nossa realidade, é possível ver em São Paulo uma iniciativa independente muito similar batizada de “São Conexões”. Por meio do portal São Paulo São, seus idealizadores procuram promover a diversidade e o crescimento de empresas locais, incentivando a economia criativa por meio do compartilhamento de serviços entre vizinhos. Desta forma, os moradores da cidade podem encontrar no entorno tudo o que precisam e em apenas 15 minutos de distância a pé. Uma iniciativa interessante e muito promissora que alinha a cidade de São Paulo com estratégias urbanas internacionalmente reconhecidas.

Entretanto, tais táticas urbanas que representam pequenas comunidades criando relações autossuficientes podem ser vistas também como uma espécie de retomada do conceito das unidades de vizinhanças, sobre o qual temos certo respaldo para comentar visto que Brasília (apesar da discrepância entre projeto e construção) é um exemplo disso.

Mas, antes de Lúcio Costa se apropriar do termo e torná-lo especialmente popular a todos os entusiastas de arquitetura e urbanismo no Brasil, Clarence Perry o cunhou ainda em 1920, desenhando um modelo de cidade que tinha como objetivo primeiro priorizar o pedestre. Sua ideia original previa a criação de áreas residenciais autônomas que abrigassem todas as necessidades básicas dos moradores, com os deslocamentos realizados em poucos minutos. O crescimento da indústria automobilística interrompeu a concretização dos seus planos, porém, o conceito de “unidade de vizinhança” segue sendo aplicado e discutido até hoje.

Vale ressaltar ainda, que esta é uma estratégia urbana que permite um paralelo também com as comunidades autônomas das Cidades-Jardim de Ebenezer Howard, concebidas ainda no final do século XIX. Apesar da sua motivação principal ter sido as péssimas condições de vida urbana decorrentes da superpopulação – causada pela migração do campo –, sua ideia de autossuficiência e conectividade entre cada comunidade muito tem a ver com os conceitos atualmente em voga.

Em relação ao nosso exemplo brasileiro, 40 anos depois que Perry cunhou o termo, Lúcio Costa traz à tona o conceito das unidades de vizinhança por meio do desenho das superquadras, um sistema que epitomiza muito do que se tem discutido sobre cidades policêntricas ou “cidades de 15 minutos”.

Concebidas com aproximadamente 300×300 metros, e emolduradas por uma larga faixa arborizada, as superquadras seriam compostas – além das residências – por comodidades que conviessem, como escola primária, lavanderia etc. “Entalados” –adjetivo que o próprio Lúcio Costa uso ao descrever o projeto – entre as vias de serviço e as locais do eixo rodoviário-residencial e separando as quadras, estão os centros de bairro com “mercadinho, o açougue, as vendas, quitandas, casas de ferragens etc.”

Na associação de quadro superquadras são constituídas as unidades de vizinhança, apresentando um repertório completo de equipamentos básicos e que, como Milton Braga afirma, com uma organização que evitou que fossem estanques, induzindo associações das quadras ora com uma, ora com outra vizinhança, dependendo das comodidades que se necessitasse. Infelizmente, apenas quatro quadras seguem à risca o plano de Lúcio Costa o que não torna possível a análise direta entre a relação da propagação do vírus com a configuração das unidades de vizinhança.

De qualquer forma, esta volta ao passado serve para nos fazer perceber como alguns conceitos vagam pelo tempo e conseguem ser aplicados séculos depois, reforçando a ideia de que o futuro, muitas vezes, parece repetir o passado. Seja por meio de utópicas comunidades autônomas ajardinadas ou por meio de um modelo urbano modernista, as lições que a história nos traz afloram neste nosso presente incerto e desafiador nos fazendo refletir sobre a importância de repensarmos as nossas cidades e, mais do isso, de repensarmos como podemos fortalecer as nossas relações enquanto comunidade, respeitando o meio ambiente e os espaços que chamamos de lar.

A pandemia tem se mostrado um experimento urbano sem precedentes reverberando no nosso modo de viver e de construir cidades, trazendo lições que devem ser levadas em conta não apenas durante o enfrentamento de uma crise sanitária, mas cotidianamente.

Fonte: Archdaily