Considerando a grande extensão e diversidade dos ecossistemas do país, associados a uma ampla gama de serviços ecossistêmicos prestados, e a escala de degradação ambiental, torna-se crucial uma reflexão profunda e coletiva sobre como lidar com toda a riqueza biológica brasileira.
O processo de urbanização acelerado no Brasil transformou a paisagem de forma radical, pressionando os ecossistemas e retificando e enterrando corpos d’água. O modelo de rápido crescimento urbano adotado criou cidades insustentáveis, com baixa qualidade de vida, que alteraram profundamente os fluxos e processos naturais, gerando um território com altos índices de desigualdade e vulnerabilidade social, ecológica e econômica. Além de severos problemas como poluição do ar, da água, do solo e sonora que as cidades brasileiras enfrentam, observa-se uma falta de conexão das pessoas com a natureza e com os processos naturais, que está intrinsecamente relacionado a estilos de vidas sedentários e hábitos alimentares nocivos, levando a problemas de saúde física e mental que afetam o bem-estar da população urbana.
Por muitas décadas, com o modelo desenvolvimentista a qualquer custo, a natureza urbana foi esquecida. A introdução e utilização das Soluções baseadas na Natureza no planejamento urbano podem contribuir para o aumento da biodiversidade urbana, uma maior resiliência frente às mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, proporcionar diversos benefícios para as pessoas e sociedade como um todo.
Neste momento em que os centros urbanos foram duramente afetados pela Covid-19, é ainda mais fundamental reconhecer o imenso potencial dos ecossistemas para dar suporte a um desenvolvimento baseado na natureza. Tal desenvolvimento é cunhado em uma requalificação ecológica, social e econômica das cidades, que aumenta a resiliência a crises futuras, reduzindo gastos públicos com deslizamentos, inundações e alagamentos, e proporcionando a melhoria da qualidade de vida, bem-estar, saúde e justiça social. A saúde humana depende da qualidade ambiental das cidades, do acesso à água e ao ar limpos. Estudos já mostraram altas taxas de mortalidade por conta de poluição em grandes centros urbanos, além de impactos mais difíceis de contabilizar, como os impactos econômicos de mortes prematuras.
É de grande relevância que os moradores das cidades tenham contato com a natureza onde vivem, trabalham e se divertem, de modo a que desenvolvam a biofilia, conceito relativo ao sentimento inato que as pessoas têm de pertencer à natureza. O incentivo à biofilia nas cidades seria um grande aliado para que a sociedade passe a valorizar mais a imensa riqueza que é a biodiversidade brasileira, estabelecendo associações com sua importância ambiental, econômica, social e até mesmo cultural. Diversos estudos mostram que quando a natureza e os ecossistemas são reintroduzidos nas cidades também é possível reduzir a criminalidade e melhorar a qualidade de vida e a saúde pública em geral.
As Soluções baseadas na Natureza contribuem para cumprir as agendas globais e suas metas, tais como a Nova Agenda Urbana, o Acordo de Paris, o Marco de Sendai (redução do risco de desastres), as Metas de Aichi e as novas metas da biodiversidade pós-2020 que serão estabelecidas este ano na COP15 em Kumming, China. Além de solucionar as demandas para as quais foram desenhadas, as SbN ainda contribuem com a Agenda 2030 e a alcançar os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável, principalmente os objetivos que dizem respeito à saúde e bem-estar, à água potável e saneamento, a cidades e comunidades sustentáveis, ao consumo e produção sustentável, à ação contra a mudança do clima, à vida terrestre, a parcerias e meios de implementação.
Segundo a definição da União Internacional para a Conservação da Natureza, SbN são ações que visam proteger, restaurar e manejar sustentavelmente ecossistemas modificados e naturais, endereçando de forma eficaz e adaptativa os desafios da sociedade e promovendo benefícios à biodiversidade e ao bem-estar humano. O termo “Soluções baseadas na Natureza” pode ser considerado como um conceito guarda-chuva que engloba outros termos tais como “infraestrutura verde”, “serviços ecossistêmicos”, “sistemas sustentáveis de drenagem urbana”, “adaptação baseada em ecossistema”, “desenvolvimento de baixo impacto” (LID – Low Impact Development), etc.
As SbN são soluções inspiradas e mantidas pela natureza e que oferecem múltiplos benefícios ambientais, sociais e econômicos. Elas são custo-eficazes, valorizam e dependem da biodiversidade de modo a regenerar funções ecológicas essenciais, como também para conectar processos e fluxos naturais. Conciliam a natureza com as necessidades humanas para a manutenção, sustentabilidade e resiliência do sistema urbano. São multiescalares e específicas para o contexto em que se encontram.
Existem diversos casos de sucesso de SbN no Brasil e no mundo, como os Páramos em Bogotá, na Colômbia; as medidas de restauração ecológica em Extrema (MG) e Anápolis (GO); o Parque Capibaribe em Recife (PE); a qualificação do Parque Peajú em Sobral (CE); os Corredores Verdes em Medellín, na Colômbia; a Área de Conectividade em Campinas (SP); os Jardins de Chuva em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia; o Parque Orla de Piratininga – Alfredo Sirkis em Niterói (RJ); e as hortas comunitárias que estão se popularizando em Florianópolis (SC) e em outras cidades.
Apesar de gargalos como o baixo conhecimento técnico e pensamento a curto prazo das gestões públicas, a carência de processos públicos de licitação que abracem as Soluções baseadas na Natureza, a falta de indicadores de SbN e de estratégias de monitoramento que gerem resultados contundentes sobre sua eficiência, além da ausência de incentivos legais e estruturas regulatórias, as SbN têm ganhado grande atenção mundial nesse momento de recuperação da pandemia da covid-19, uma vez que promovem a integração efetiva das agendas ambiental, social e urbana e aumento de resiliência a novas crises pandêmicas. A abordagem de múltiplos desafios simultaneamente torna as SbN uma alternativa concreta e abrangente para o aumento da resiliência urbana a crises futuras nos setores socioeconômico, ambiental e da saúde pública, e para o fomento da justiça ambiental no território urbano.
Investir em Soluções baseadas na Natureza, e na consequente preservação dos ecossistemas, é uma possibilidade real de reposicionar o Brasil na liderança do cenário internacional rumo a um caminho que fortaleça a bioeconomia, a geração de renda e emprego verdes, ativando uma estratégia de recuperação pós- pandemia com cidades mais inclusivas, resilientes, verdes e inteligentes.
Cecília Herzog é paisagista urbana, professora da graduação e coordenadora da pós-graduação em paisagismo ecológico: planejamento e projeto da paisagem da PUC-Rio. É palestrante, escritora, especialista e consultora em urbanização sustentável e soluções baseadas na natureza.
Daniela Rizzi é senior officer de Soluções baseadas na Natureza e Biodiversidade no Iclei Europa. Arquiteta e urbanista pela Universidade de São Paulo e doutora em planejamento paisagístico pela Universidade Técnica de Munique. É líder do Projeto Realidade Climática e membro da Comissão Mundial de Manejo de Ecossistemas da IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza).
Victor Ferraz é coordenador de biodiversidade do Iclei Brasil. Formado em administração pública pela FGV e mestre em ecologia pela Schumacher College & University of Plymouth.
Por Archidaily